Romanos
3.21-26 Mas, agora, se
manifestou, sem a lei, a justiça de Deus, tendo o testemunho da Lei e dos
Profetas, isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre
todos os que creem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos
estão da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela
redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação pela fé
no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes
cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste
tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em
Jesus.
Declarado
Inocente!
"Mas, agora, se manifestou,
sem a lei, a justiça de Deus, tendo o testemunho da Lei e dos Profetas” (3.21).
Essa seção que começa em Romanos 3.21 e se estende até 4.25 apresenta o remédio
do diagnóstico que Paulo tinha dado anteriormente para a questão do pecado em
Romanos 1.18— 3.20. Vimos que Paulo primeiramente apresentou o mundo pagão
totalmente mergulhado nas trevas do pecado. Por outro lado, a situação dos seus
compatriotas judeus não era diferente. Eles também estavam debaixo do domínio
do mesmo pecado. É, pois, nessa seção qüe o apóstolo apresentará a solução de
Deus para a rebelião do homem — a justiça de Deus imputada a todos por Cristo
Jesus. À parte da lei, isto é, sem o concurso da lei, a justiça de Deus se
manifestou para resolver o dilema humano. Essa justiça divina, que se
manifestaria em Cristo Jesus, já era testemunhada pela própria lei e pelos profetas
(v. 21). Primeiramente, a imagem que Paulo tem em mente aqui é de um tribunal.
Alguém que se encontra como réu diante de um juiz e de quem espera o veredicto
condenatório. Todavia, em vez de receber uma condenação, ele recebe a
absolvição.
O expositor bíblico William
Barclay mostra o pano de fundo da doutrina da justificação nessa passagem .
Nesse exemplo de Paulo, imagina-se o homem diante do tribunal de Deus. Barclay
destaca com muita propriedade que a palavra grega traduzida como “justificar”
vem da mesma raiz de dikaiún e que todos os verbos gregos que terminam em ún
têm o sentido de considerar alguém como algo e não 0 de fa^er algo a alguém.
Dessa forma, se alguém que é inocente se apresenta diante de um juiz, o juiz,
evidentemente, o declarará inocente. Todavia, o caso mostrado por Paulo aqui é
diferente. A pessoa que se apresenta diante de Deus é totalmente culpada,
merecendo a punição do seu erro, porém, o justo Juiz, em uma demonstração de
sua graça infinita, considera-o como se fosse inocente. Isso é o que se entende
do significado da palavra “justificação” no contexto paulino. Quando Paulo diz
“Deus justifica o ímpio”, significa, dentro do contexto da justificação, que
Deus trata o ímpio como alguém bom. E evidente que tal raciocínio deixou os
judeus totalmente escandalizados. Na mente dos judeus, apenas um juiz iníquo
agiria dessa forma, pois justificar o ímpio é uma abominação para Deus (Pv
17.15); “não justificarei o ímpio” (Ex 23.7). Todavia, a argumentação de Paulo
mostra que é exatamente isso o que Deus fez.
Na mente de Paulo, observa
Barclay, se alguém desejasse saber como Deus é, então deveria olhar para Jesus,
pois Ele revelou Deus aos homens. O verbo encarnado de Deus veio mostrar o
grande amor de Deus pelos homens, mesmo estes estando mortos em seus delitos e
pecados (Ef 2.1,2). Barclay destaca que “quando descobrimos isso e cremos,
nossa relação com Deus muda radicalmente. Estamos conscientes do nosso pecado,
mas não estamos aterrorizados ou distantes. Quebrantados e arrependidos,
recorremos a Deus como uma criança triste se chega a sua mãe e sabemos que o
Deus a quem chegamos é amor. Isso é o que significa justificação pela fé em
Jesus Cristo. Isso significa que estamos em relacionamento correto com Deus
porque acreditamos sinceramente que o que Jesus nos disse de Deus é a verdade.
Já não somos estranhos que têm medo de um Deus irado. Somos filhos, crianças
errantes que confiam no amor do Pai que os perdoará. E não podíamos nunca
chegar a esse relacionamento com Deus, se Jesus não tivesse vindo para viver e
morrer para nos dizer como maravilhosamente Deus nos ama”.1
Escravo
Alforriado
“...pela redenção que há em
Cristo Jesus” (3.24b). A palavra traduzida como “redenção” vem do grego
apolutrósis. De acordo com o léxico grego de Gerhard Kittel, essa palavra tem o
sentido de resgate ou pagamento de um regaste, passando a ser um termo muito
importante no Novo Testamento.2 A história seguinte ajuda-nos a entender o seu
real sentido.
No tempo da escravidão, nos Estados
Unidos, numa movimentada rua de certa cidade, uma multidão de pessoas concorreu
para uma feira de escravos. Amarrados de pés e mãos, aguardavam compradores.
No meio dos escravos, estava uma moça de
olhar cabisbaixo, triste, pensando na sua condição de escrava. Um cavalheiro
passou, olhou para os escravos e teve profunda compaixão por aquela escrava,
que era tratada como os demais escravos, feito animais. Na hora dos lances, o
cavalheiro ofereceu o dobro. O leiloeiro bateu o martelo, estava livre, podia
gozar de sua liberdade. Soltaram a escrava e o seu libertador disse-lhe:
“Acompanhe-me”. Com raiva, ela cuspiu na cara do seu benfeitor. Ele tirou o
lenço do bolso, limpou a cusparada. Terminou a parte burocrática. Pegou os
documentos e deu à jovem. Era a carta de alforria. A escrava estava livre. Com
aqueles papéis ninguém conseguiria escravizá-la.
Com os documentos na mão, dizia quase sem
parar: “O senhor me comprou para me libertar?”. Estava livre. Aquele homem
comprou a libertação da jovem escrava. Poderia gozar de sua liberdade. A nossa
escravidão, imposta pelo Diabo, é muito mais grave do que a escravidão daquela
jovem negra. Estávamos nos-grilhões do Diabo. Comumente, ele nos levava pelo
caminho do cigarro, das drogas, da prostituição, do furto e do crime. E esses
pecados se refletiam em nossa família, nossos filhos, nosso trabalho. No
cabresto do Diabo, ele nos levava por esses caminhos de sombras, de desilusão,
de amargura, de morte. Matou a esperança em nosso coração. Como aquele
cavalheiro nos Estados Unidos pagou a libertação da jovem, Cristo pagou o preço
da nossa redenção.
O
Preço de um Resgate
"... a qual Deus propôs para propiciação pela fé
no seu sangue... ” (3.25). O vocábulo “propiciação” (gr. hilastérion),
comenta Elvis Carballosa, significa sacrifico expiatório. Esse sacrifício
expiatório foi a morte de Cristo em lugar do pecador. A frase “no seu sangue”
se refere à morte de Cristo. A morte de Cristo foi uma realidade histórica.4
Romanos
3.27-31
Onde
está, logo, a jactância? E excluída. Por qual lei? Das obras? Não! Mas pela lei
da fé. Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, sem as obras da
lei. É, porventura, Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios?
Também dos gentios, certamente. Se Deus é um só, que justifica, pela fé, a
circuncisão e, por meio da fé, a incircuncisão, anulamos, pois, a lei pela fé?
De maneira nenhuma! Antes, estabelecemos a lei.
Jesus
e o Judaísmo Palestino
“Concluímos, pois, que 0 homem éjustificado
pela fé, sem as obras da lei” (3.28). Nesse ponto, dentro de nosso comentário
textual e exegético desse texto, é preciso fazer referência a um grande debate
que nos últimos anos tem surgido em torno da teologia paulina da graça.5 Alguns
expositores têm defendido a tese de que Paulo não estaria combatendo o
legalismo judaico, isto é, a salvação pelas obras, mas em vez disso estaria se
posicionando apenas contra o orgulho judaico de pertencer ao povo da aliança.
Os escritos do norte-americano E. P. Sanders revolucionaram os estudos sobre a
teologia paulina quando, em 1977, publicou seu livro Paulo e 0 Judaísmo
Palestino.6 Sanders parte do princípio de que o judaísmo não era uma religião
legalista que pregava a salvação pelas obras. Esse pensamento de Sanders,
denominado de A. Nova Perspectiva sobre Paulo, é radicalmente oposto àquele da
tradição cristã histórica. O livro de Sanders é uma tentativa de provar que a
teologia sobre Paulo, que os reformadores defendiam, não era de fato de Paulo,
mas de Agostinho, bispo de Elipona. O escritor William S. Campbell destaca que
“é perceptível, pela leitura de Sanders, que um debate cristão interno
posterior sobre a graça e obras foi projetado no cristianismo inicial, fazendo
com que nosso entendimento das origens cristãs, em relação ao judaísmo, se
tornasse um tanto distorcido. Em certo sentido, esse é, na verdade, mais um
debate sobre a graça dentro do cristianismo. E esclarecedor observar que foram os escritos antipelagianos
de Agostinho o material que Lutero considerou mais úteis. Para Lutero,
Agostinho é sua autoridade preferida, seu principal aliado na luta contra as
tendências pelagianas do escolasticismo. Mas, em decorrência disso, os judeus
são vistos por Lutero como representantes de um tipo de pelagianismo e, como
tal, inimigos do Evangelho tanto quanto a igreja não reformada”.7 Partindo,
portanto, desse princípio, E. P. Sanders se opôs a essa visão dos reformadores.
Ao contrário do que crê o cristianismo tradicional, disse que o judaísmo é uma
religião da aliança em que o status de pertencer ao grupo eleito, e não a
obediência legalista da lei, é a principal característica. Para Sanders, os
judeus não acreditavam que a obediência aos preceitos legais lhes garantia
salvação, mas apenas mantinha seu status dentro do grupo da aliança. Nesse
aspecto, em vez de ser a causa da salvação, a obediência era apenas a condição.
Essa nova perspectiva, Sanders denominou denomismo da aliança. Em outras
palavras, o erro dos judeus era o de se orgulhar de pertencer ao povo eleito de
Deus, pertencer a aliança que Deus fez com Israel e não querer agradá-lo por
meio das obras.8 Outro autor que fez coro com Sanders foi o britânico James D.
G. Dunn que também passou a defender a Nova Perspectiva sobre Paulo. Todavia,
Dunn fez críticas ao modelo de Sanders para implantar o seu próprio modelo.
Dunn afirma que “o Paulo luterano foi substituído por um Paulo idiossincrático
que, de maneira arbitrária e irracional, volta-se contra a glória e a grandeza
da teologia pactuai do judaísmo e abandona o judaísmo simplesmente por que ele
não é cristianismo”.9 O teólogo presbiteriano Augustas Nicodemus observa que J.
D. G. Dunn nessa nova abordagem sociológica sobre Paulo “tem recebido vasta
aceitação. Para ele, Paulo ataca as ‘obras da lei’ não porque elas expressam
algum desejo de alcançar mérito por parte dos judeus, mas porque entende que
elas fazem uma distinção entre os judeus, o povo de Deus da antiga dispensação,
e os gentios, a quem o evangelho está sendo oferecido. As ‘obras da lei’, que
Paulo identifica como restritas à circuncisão, às leis sobre alimentos puros e
impuros (kashruí) e aos dias especiais do calendário judaico, são emblemas que
caracterizam o judaísmo e devem ser rejeitadas porque enfatizam a separação
entre judeus e não judeus, a qual Cristo veio abolir”.10 Duas coisas precisam
ser observadas aqui. Primeiro, a leitura de Romanos 3.28 mostra claramente que
Paulo não via o problema da rejeição judaica apenas como sendo um orgulho de
pertencer ao povo da aliança.
Escritura é clara o suficiente
para mostrar que a busca pelo mérito por meio das obras constituiu-se o
principal obstáculo para um judeu legalista aceitar a justificação somente pela
fé. Em segundo lugar, é um fato que não apenas Lutero, mas outros reformadores
depois dele, beberam do poço doutrinário de Agostinho, como por exemplo, a
crença no pecado original com a consequente doutrina da regeneração batismal,
etc. Embora haja similaridade entre o legalismo judaico e a doutrina da
salvação pelas obras de Pelágio, não é correto fazer a crença luterana na
justificação pela fé depender exclusivamente de Agostinho. Não há como negar
que Lutero foi influenciado de forma negativa por Agostinho, todavia, a própria
história da Reforma, com seu lema “O justo viverá pela fé” (Rm 1.17), revela a
grande influência que a Carta aos Romanos teve na vida e obra do reformador
alemão. Não é seguro, portanto, pelo menos neste caso, fazer a convicção
teológica do reformador alemão depender somente de Agostinho. Por outro lado, é
certo e historicamente provado, como demonstrou Sanders, que Lutero errou ao
odiar os judeus ao projetar neles o erro pelagiano.
Romanos 4.1-25 Que
diremos, pois, ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne? Porque, se
Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de
Deus. Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado
como justiça. Ora, àquele que faz qualquer obra, não lhe é imputado o galardão
segundo a graça, mas segundo a dívida. Mas, àquele que não pratica, porém crê
naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.
Assim
também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as
obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas maldades são perdoadas, e cujos
pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o
pecado. Vem, pois, esta bem-aventurança sobre a circuncisão somente ou também
sobre a incircuncisão? Porque dizemos que a fé foi imputada como justiça a
Abraão. Como lhe foi, pois, imputada? Estando na circuncisão ou na
incircuncisão? Não na circuncisão, mas na incircuncisão. E recebeu o sinal da
circuncisão, selo da justiça da fé, quando estava na incircuncisão, para que
fosse pai de todos os que creem (estando eles também na incircuncisão, a fim de
que também a justiça lhes seja imputada), e fosse pai da circuncisão, daqueles
que não somente são da circuncisão, mas que também andam nas pisadas daquela fé
de Abraão, nosso pai, que tivera na incircuncisão. Porque a promessa de que
havia de ser herdeiro do mundo não foi feita pela lei a Abraão ou à sua
posteridade, mas pela justiça da fé. Pois, se os que são da lei são os
herdeiros, logo a fé é vã e a promessa é aniquilada. Porque a lei opera a ira;
porque onde não há lei também não há transgressão. Portanto, é pela fé, para
que seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja firme a toda a
posteridade, não somente à que é da lei, mas também à que é da fé de Abraão, o
qual é pai de todos nós, (como está escrito: Por pai de muitas nações te
constituí.), perante aquele no qual creu, a saber, Deus, o qual vivifica os
mortos e chama as coisas que não são como se já fossem. O qual, em esperança,
creu contra a esperança que seria feito pai de muitas nações, conforme o que
lhe fora dito: Assim será a tua descendência. E não enfraqueceu na fé, nem
atentou para o seu próprio corpo já amortecido (pois era já de quase cem anos),
nem tampouco para o amortecimento do ventre de Sara. E não duvidou da promessa
de Deus por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus; e
estando certíssimo de que o que ele tinha prometido também era poderoso para o
fazer. Pelo que isso lhe foi também imputado como justiça. Ora, não só por
causa dele está escrito que lhe fosse tomado em conta, mas também por nós, a
quem será tomado em conta, os que cremos naquele que dos mortos ressuscitou a
Jesus, nosso Senhor, o qual por nossos pecados foi entregue e ressuscitou para
nossa justificação.
A
Jornada da Fé
A partir dessa seção, Paulo
introduz a história do patriarca Abraão com um exemplo do seu argumento da
justificação pela fé. Paulo argumenta a partir de Gênesis 15; todavia, acredito
ser oportuno aqui vermos alguns aspectos anteriores da jornada desse gigante
espiritual. Voltemo-nos, pois, ao capítulo 13 de Gênesis para traçarmos o
percurso dessa jornada.
1 Uma jornada para conviver com altares, e não
com pirâmides. “Subiu, pois, Abrão do Egito [a terra das pirâmides] [...] E
fez as suas jornadas do Sul [Neguebe] até Betei, até ao lugar onde, ao
princípio, estivera a sua tenda, entre Betei e Ai; até ao lugar do altar que,
dantes, ali tinha feito; e Abrão invocou ali o nome do Senhor” (Gn 13.1-4).11
Abraão saiu do Egito, onde conviveu com as grandes pirâmides, para voltar à
Palestina, terra onde construíra altares. Deus quer o fiel convivendo com
altares, e não com pirâmides.
2.
Uma jornada onde a visão deve ser maior do que a ambição. “E houve contenda
entre os pastores do gado de Abrão e os pastores do gado de Ló [...] E disse
Abrão a Ló: Ora, não haja contenda entre mim e ti e entre os meus pastores e os
teus pastores, porque irmãos somos” (Gn 13.7,8). A ambição, o orgulho e o
desejo de ter são agentes causadores da quebra da unidade fraternal, mas a
busca da Graça, um Favor Imerecido | 39 koinonia é o remédio para esse mal. A
luta por espaço arranhou o relacionamento entre os pastores de Abraão e Ló.
Evidentemente que isso estava tendo consequências entre o tio e o sobrinho. E
melhor abrir mão de alguma coisa do que perm itir que venha a arranhar a comunhão
fraternal.
3.
Uma jornada que não pode ser seduzida por uma imitação do Paraíso nem pelas
lembranças do Egito. “E levantou Ló os seus olhos e viu toda a campina do
Jordão, que era toda bem regada, antes de o Senhor ter destruído Sodoma e
Gomorra, e era como o jardim do Senhor, como a terra do Egito, quando se entra
em Zoar” (Gn 13.10). Ló se deixou seduzir por uma lembrança do Paraíso, todavia
Abraão procurou viver a realidade nua e crua de uma vida de fé. As campinas de
Sodoma lembravam o Paraíso, mas não eram o Paraíso. Às vezes, o crente se deixa
iludir pelas aparências e em vez de procurar o caminho mais seguro, busca os
atalhos.
4.
Uma jornada que se aproxima de Canaã e se afasta de Sodoma. “Habitou Abrão na
terra de Canaã, e Ló habitou nas cidades da campina e armou as suas tendas até
Sodoma” (Gn 13.12,13). Enquanto Ló se aproximava de Sodoma, do pecado, Abraão
se distanciava cada vez mais dele. Impulsionado pelos atrativos, Ló se
aproximava cada vez mais dos encantos de Sodoma. Foi uma sedução que,
posteriormente, lhe custou muito caro. Por que em vez de se afastar de Sodoma
muitos se aproximam cada vez mais?
5. Uma jornada onde a exclusividade
determina a intimidade. “E disse o Senhor a Abrão, depois que Ló se apartou
dele” (Gn 13.14). Às vezes precisamos nos separar de determinadas coisas, até
mesmo de pessoas, se queremos ouvir a voz do Senhor. Não dá para conviver com
quem gosta de Sodoma.
6. Uma jornada onde Deus mostra 0 futuro, mas é 0 homem
quem constrói 0 presente. “Levanta, agora, os teus olhos e olha desde o lugar
onde estás, para a banda do norte, e do sul, e do oriente, e do ocidente;
porque toda esta terra que vês te hei de dar a ti e à tua semente, para sempre.
[...] Levanta-te, percorre essa terra, no seu comprimento e na sua largura;
porque a ti a darei. E Abrão armou as suas tendas, e veio, e habitou nos
carvalhais de Manre, que estão junto a Hebrom; e edificou ah um altar ao
Senhor” (Gn 13.14-18). Deus revela o futuro,
mas somos nós quem construímos o presente. É preciso haver deslocamento.
Começar e recomeçar sempre. Deus faz promessas e as cumpre, mas é preciso ter
paciência, encarar as incertezas do presente para chegar às garantias do
futuro.
7. Uma jornada onde pessoas são mais
importantes do que coisas. “Também tomaram a Ló, que habitava em Sodoma,
filho do irmão de Abrão, e a sua fazenda e foram-se. [...] não tomarei coisa
alguma de tudo o que é teu; para que não digas: Eu enriqueci a Abrão” (Gn
14.12,23). Abraão era rico, mas não punha nas riquezas a sua confiança. O
importante para ele era a comunhão com o seu Deus.
8.
Uma jornada onde A brão aprendeu que era grande, mas não o maior. “E
Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; e este era sacerdote do Deus
Altíssimo. E abençoou-o e disse: Bendito seja Abrão do Deus Altíssimo, o
Possuidor dos céus e da terra; e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os
teus inimigos nas tuas mãos. E deu-lhe o dízimo de tudo” (Gn 14.18,20;
Hb7.1-10). Mesmo sendo um homem grande, Abraão reconheceu que havia alguém
ainda maior. Melquisedeque é um tipo de Cristo, e o velho patriarca aprendeu
desde sempre a depender da fé nEle.
Pois
bem, voltemos ao texto.
O texto de Romanos 4.1-25,
como vimos, trata com exclusividade da vida do velho patriarca Abraão. A
exegese feita por Paulo nessa passagem mostra, a partir do livro de Gênesis,
que a justificação de Abraão não se deu em decorrência das obras, mas da fé.
Nesse aspecto há uma sim ilaridade entre a fé de Abraão e a fé do cristão.
Lucien Cerfaux sintetizou bem essa analogia usada por Paulo.12 Dentro dessa
passagem de Romanos é possível perceber com clareza Paulo fazendo a ligação
entre a justiça de Abraão, Cristo e a justiça do cristão. “Pois, que di% a
Escritura? Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça” (Km 4.3).
Paulo tom a com o ponto de partida de seu argumento Gênesis 15.6, onde Deus fez
a promessa a Abrão de lhe dar uma posteridade numerosa. O judaísmo acreditava
que Abraão havia sido justificado em consequência do rito da circuncisão, o que
Paulo vai negar. Paulo observa que Deus justificou o patriarca em consequência
da sua fé, que aconteceu muito antes da prática da circuncisão. Dessa form a,
como m ostra Romanos 4.4, Abraão não poderia ter sido justificado pelas obras,
mas pela fé. A sua justificação foi uma dádiva, e não uma dívida.
O expositor Lucien Cerfaux
destaca que “Paulo exalta a fé de Abraão, emoldurando-a de maneira mais
determinada com a fé dos cristãos, cujo objeto principal é a ressurreição de
Cristo. Abraão crera em Deus ‘que dá vida aos mortos e, chamando-as, faz
existir as coisas que não existiam’ (Rm 4.17). Paulo explica seu modo de
pensar: ‘E sem vacilar na fé, não considerou nem o seu corpo, já sem
vitalidade, por ser quase centenário, nem a falta de vigor do seio de Sara; nem
hesitou por falta de fé, perante a promessa de Deus, antes hauriu força na sua
fé, dando gloria a Deus’ (Rm 4.19). Notem-se as expressões ‘morte’ (o corpo de
Abraão, o seio de Sara estão mortos) e ‘dar vida’. É a antítese
morte-ressurreição. A fé de Abraão constitui o primeiro esboço da fé cristã;
pela maneira com a qual a formula, suspeita-se que Paulo a encara como um
‘tipo’ de fé na morte e ressurreição de Cristo”.
“Bem-aventurado 0 homem a quem 0 Senhor não
imputa 0pecado” (Rm 4.8).
Seguindo um dos princípios
hermenêuticos (Ge^erah Sahawah) da escola rabínica de Hillel, faz um paralelo
entre Salmos 32.1 e Gênesis 16.6. O propósito do apóstolo é interpretar Gênesis
15a partir do Salmo 32. “O fato de Abraão ter sido considerado justo, de
ter-lhe sido atribuída justiça diante de Deus (Gn 15.6), significa que Deus não
contou, atribuiu seus pecados contra ele (SI 32.1,2), com referência ao perdão
divino dos pecados de adultério e homicídio cometidos por Davi [cf. 2 Sm 11].
Tudo isso significa que Abraão foi justificado diante de Deus, pela fé e não
por obras. De fato, Abraão era um pecador cuja única esperança era a graça de
Deus recebida pela fé”.14
Na argumentação de Paulo,
ficam, portanto, os fatos:
1.
Quando Abraãofoi justificado, era ainda incircunciso. Isso significa que Abraão
seria o pai de todos os que haviam de crer sem estar circuncidados
(incircuncisos), e assim fosse creditada a justiça também a eles.
2. A
circuncisão foi dada após, como “sinal”
(segundo Gn 17.1 Oss), isto é, como sinal da justiça da fé que ele havia
recebido sendo ainda incircunciso. Isso significa que Abraão seria o pai de
todos circuncisos, isto é, daqueles que não se limitam à circuncisão, mas que,
além disso, seguem na esteira da fé que, ainda incircunciso, possuía nosso pai
Abraão (Rm 4.11).15
Bibliografia
1
BARCLAY, William. Comentário alNuevo Testamento — 'Romanos, 17 tomos.
Barcelona, Espanha: Editorial CLIE. 2 KITTEL, Gerhard. Compendio del Dicáonario
Teológico D el Nuevo Testamento. Grand Rapids, Michigan: Libros Desafio. 3
TOGNINI, Enéas. Cristo Tiberta o Escravo. Disponível em <http://www.
batistadopovo.org.br> 4 CARBALLOSA, Elvis. Romanos — Una Orientation Expositivay
Practica. Grand Rapids, Michigan: Editorial Portavoz. 5 WESTERHOLM, Stephen.
Justification Reconsidered: Rethinking a Pautine Theme. Grand Rapids, Michigan:
Eerdmans Publishing, 2013. 6 SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism. Filadélfia: Fortress Press, 1977. 7 CAMPBELL, William.
Paulo e a Criação da Identidade Cristã. São Paulo: Edições Loyola, 2011. 8 Em
resposta às críticas que foram feitas à sua obra, E. P. Sanders escreveu o
livro Paulo, a Lei e o Povo Judeu. Nessa obra, Sanders faz alguns ajustes nos
pontos controversos, porém afirmando o que havia escrito em Paulo e o Judaísmo
Palestino. 9 DUNN, James D. G. A Nova Perspectiva sobre Paulo. São Paulo:
Editora Academia Cristã/Loyola. 10 LOPES, Augustus Nicodemus. A Nova
Perspectiva sobre Paulo — Um Estudo sobre as “Obras da Lei” em Gálatas.
Disponível em <http://www.mackenzie.br/>. Acesso em 26/11/2015. "
Abrão esteve no Egito por volta de 2000 a.C. e as pirâmides foram construídas
pelo menos 600 anos antes de sua chegada lá. 12 CERFAUX, Lucien. Cristo na
Teologia de Paulo. São Paulo: Editora Academia Cristã/Paulus. 13 Idem, p. 166,
167. 14 PATE, C. Mervin. Romanos — Comentário Expositivo. São Paulo: Editora
Vida Nova, 2015. 15 CERFAUX, Lucien. Cristo na Teologia de Paulo. São Paulo:
Editora Academia Cristã/Paulus.
Por
Dc. Geazi Saqntos
Nenhum comentário:
Postar um comentário